Diego Renoldi Quaresma de Oliveira:
O dia 8 de janeiro de 2023 se tornou marcante e pertence à história do Brasil: a um dia de completar um ano, a Constituição da República de 1988 passou, desde a sua promulgação em 5 de outubro de 1988, por seu pior teste de resistência, por assim dizer.
Inspirados na invasão ao Congresso dos Estados Unidos (Capitólio) ocorrida anos antes, mais precisamente em 6 de janeiro de 2021 [1], no fatídico 8 de janeiro de 2023, manifestantes violentos invadiram o Supremo Tribunal Federal o Congresso e o Palácio do Planalto em Brasília, entraram nos salões e gabinetes destruindo tudo pela frente, ameaçaram e feriram policiais que tentavam, inutilmente, impedir a destruição do patrimônio público nacional. [2]
Conforme escreveu Andre Callegari: “[O]s atos já entram para a triste história do Brasil e o julgamento da Suprema Corte não só entrará para a nossa História, mas, também, deixará um registro diferencial do que são manifestações políticas pacíficas — o que é permitido e salutar para a democracia — do que configura a tentativa de abolir o Estado democrático”. [3]
Segundo informações do STF, no total, foram instauradas 1.354 ações penais contra participantes dos atos antidemocráticos [4]. Em 14/9/2023, a primeira pessoa participante do chamado “dia da infâmia” foi condenada [5]. Até o momento, a Corte Suprema julgou e condenou 30 pessoas por crimes como dano qualificado (artigo 163, parágrafo único, I, II e III e IV do Código Penal), associação criminosa (artigo 288, caput, do Código Penal), abolição violenta do Estado Democrático de Direito (artigo 359-L do Código Penal), tentativa de golpe de Estado (artigo 395-M do Código Penal) e deterioração de patrimônio tombado (artigo 62 e incisos da Lei Federal 9.605/1998), restando, ainda, cerca de 200 denunciados por crimes destes mesmos jaezes aguardando julgamento.
Exatamente igual a invasão ao Congresso dos EUA ocorrida anos antes, mais precisamente em 6 de janeiro de 2021, onde lá, até julho de 2023, 1.069 pessoas haviam sido acusadas da prática de diversos crimes, sendo que aproximadamente, 561 pessoas foram criminalmente condenadas, e 335 delas, sentenciadas a períodos de encarceramento [6].
Mas, como Fernando Cesar de Oliveira faria havia sustentado publicamente logo após o ataque às instituições no dia 8 de janeiro de 2023 [7], não há um perfeito enquadramento legal das condutas [à lei antiterrorismo].
De fato, seria um erro culpar os envolvidos nos ataques à Praça dos Três Poderes com base na Lei Federal 13.260/2016 chamada lei antiterrorismo, eis que para a imputação criminal pela prática de atos de terrorismo (artigo 5º da referida lei) é necessária especial motivação, isto é, que o agente tenha agido por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião [8], condutas que não se mostraram presentes no dia 8 de janeiro de 2023. Entendimento, aliás, seguido pelo Supremo nas ações penais até então julgadas, a exemplo do decidido na Ação Penal 1.183/DF.
Traçando um paralelo dos atos violentos (ou que incitem diretamente a violência) com a liberdade de expressão, isto é, como legítimo produto da manifestação do pensamento, deve-se ressaltar o seguinte. A liberdade de expressão é um direito constitucionalmente assegurado (artigos 5º, IV e 220 da Constituição da República) e um elemento essencial em qualquer democracia.
E isso quer dizer que — excetuando atos de violência (dano patrimonial e dano físico) que merecem a devida responsabilização civil e criminal exatamente como no caso dos crimes praticados no dia 8 de janeiro de 2023 — ativismos genéricos que conclamem por um golpe de Estado, revolução armada, volta da ditadura etc. por mais abjetas que possam ser essas declarações e vontades, se permanecerem no “campo do mercado livre de ideias”, elas estão protegidas pelo direito à livre manifestação do pensamento e não autorizam que o Estado se intrometa no (e em qualquer conteúdo) do discurso considerado politicamente incorreto. Do contrário, se estaria permitindo ao Estado que ingresse livremente no terreno da censura e de violações à liberdade de expressão [9].
Assim, é preciso destacar que atos de violência direta e imediata como aqueles praticados no dia 8 de janeiro ocupam lados opostos da legalidade jurídica com atividades protegidas pelo direito fundamental da liberdade de expressão como artigos, livros, protestos, críticas — ainda que utilizados radicalmente com termos exagerados ou até mesmo manifestações do pensamento que ingressam no campo do non sense.
É dizer, responsabilizar indistintamente como “ataque às instituições”, para usar uma expressão tão desgastada nos dias de hoje, aqueles que pregam a saída deste ou daquele presidente ou até mesmo que defendem intervenção militar ou revolução armada de qualquer tipo volta da ditadura etc., conjuntamente com pessoas que participaram de atos de violência como o episódio de Brasília não é dar tratamento igual a coisas que são, por sua própria natureza, muito diferentes. É preciso dizer que há uma enorme distância entre atos de violência que resultam em condutas tipificadas como crime pelo ordenamento jurídico com manifestações não-violentas utilizadas como estratégia de transformação social (também chamadas de resistência não violenta a exemplo do movimento dos Diretas Já nos anos de 1980).
A Constituição da República de 1988 passou em mais um teste — o pior — até então desde a sua promulgação. E com seu sistema de freios e contrapesos (checks and balances), apesar da violência e do desrespeito com a coisa pública, ela e os três poderes do país perseveraram dada a reação democrática das instituições aos atos do dia 8 de janeiro de 2023.
Pelo mesmo teste também passou o STF, que com todas as ressalvas e críticas possíveis desde a sua composição atual, como a sua forma de decidir determinados temas [10], pode, entretanto, ser muito bem resumido com o emprego das palavras ditas pelo ex-ministro Francisco Rezek: “[D]uzentos anos de história não se apagam em poucas horas de vandalismo e irracionalidade. Se o Supremo sobrevive aos estragos materiais e à fúria que lhes deu origem, é porque sua fortaleza não se confina no vidro, na madeira ou na pedra.” [11]
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[1] Consultar: https://www.americanoversight.org/investigation/the-january-6-attack-on-the-u-s-capitol.
[2] Relembre do caso aqui: https://www1.folha.uol.com.br/folha-topicos/ataque-a-democracia/.
[3] Ver: CALLEGARI, André Luís. O papel do STF no julgamento dos atos antidemocráticos. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-set-15/andre-callegari-julgamento-atos-antidemocraticos/.
[4] Consultar: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=523797.
[5] Ver: https://oglobo.globo.com/politica/noticia/2023/09/14/8-de-janeiro-quem-e-aecio-lucio-costa-pereira-primeiro-condenado-pelo-stf-pelos-atos-golpistas.ghtml.
[6] Consultar: https://www.justice.gov/usao-dc/30-months-jan-6-attack-capitol e aqui: Maria Eduarda Portela. EUA: extremista pega 17 anos de prisão por invasão ao Capitólio. Disponível em: https://www.metropoles.com/mundo/eua-extremista-pega-17-anos-de-prisao-por-invasao-ao-capitolio.
[7] Consultar entrevista disponível em: https://www.olharjuridico.com.br/noticias/exibir.asp?id=50609¬icia=lei-antiterrorismo-pode-ser-invocada-no-episodio-dos-ataques-ocorridos-em-brasilia-especialista-responde&edicao=2
[8] No mesmo sentido ver: STJ, Sexta Turma. HC 537.118-RJ, rel. min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 05-12-2019 (Info 663).
[9] Sobre a liberdade de expressão ver o recente artigo: OLIVEIRA, Diego Renoldi Quaresma de; FARIA, Fernando Cesar de Oliveira. O politicamente correto emparedando liberdades. Disponível em: https://jornaltribuna.com.br/2023/11/o-politicamente-correto-emparedando-liberdades/.
[10] Algumas críticas podem ser, inclusive, lidas aqui e texto para o Conjur: OLIVEIRA, Diego Renoldi Quaresma de; FARIA, Fernando Cesar de Oliveira. A PEC 8/2021 e a limitação das decisões monocráticas nos tribunais. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-out-17/renoldi-faria-decisoes-monocraticas-tribunais/.
[11] Consultar: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=523863
Artigo originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico: https://www.conjur.com.br/2024-jan-07/8-de-janeiro-de-2023-um-ano-da-constituicao-da-republica-em-teste/