A PEC 8/2021 e a limitação das decisões monocráticas nos tribunais

Por Diego Renoldi Quaresma de Oliveira e Fernando Cesar de Oliveira Faria:

Em menos de um minuto, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado aprovou no dia 4 de outubro a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 8/2021 que propõe, entre outros pontos, a limitação de decisões monocráticas (tomadas por um único juiz) do Supremo Tribunal Federal (STF) e de qualquer outro tribunal do país, além da limitação nos prazos para os pedidos de vista pelos julgadores. O conteúdo da PEC parece, a princípio, justificada e, a ideia de prestígio da full bench clause (cláusula de reserva de plenário) prevista no artigo 97 da Constituição da República, é bem-vinda.

A votação foi simbólica (já havia consenso entre os membros da CCJ) e, sem dúvidas, a tramitação desta PEC, discutida há quatro anos, acirra o debate entre o Congresso e a Suprema Corte brasileira, dividindo opiniões[1]. Ademais, não é nenhuma novidade a tentativa de decisões do Supremo, principalmente em relação ao controle de constitucionalidade.

Nós, os juristas, estamos “acostumados” há muito tempo com decisões monocráticas proferidas por juízes de tribunais. Os tribunais estão decidindo os casos monocraticamente há bastante tempo, aliás[2]. Pior que isso, sabemos que o efeito prático do agravo contra esta decisão, como meio recursal para levar a questão decidida pelo relator para a apreciação pelo colegiado, é uma arrematada ficção.[3]

É difícil fazer críticas aos tribunais no Brasil, às vezes soa antipático, mas o dever cívico-institucional (e até professoral) deve superar eventuais desconfortos nesse sentido. Pois bem. Muito se vê por aí nos âmbitos de “decisões ativistas” e “judicialização da política”. O fenômeno, portanto, não é exclusivo do STF. Entretanto, toma-se a Corte Suprema como exemplo, da ocasião do julgamento do Habeas Corpus 126.292 (possibilidade de cumprimento da sanção penal antes do trânsito em julgado) decidindo em desconformidade com o texto Constitucional, gerando desse modo um exercício irregular da atividade jurisdicional. Ativismo judicial é exatamente e resumidamente isso: amparar-se em decisões pessoais, idiossincráticas ao invés de decidir conforme estabelece a lei.[4]

Sem balizas temporais, a decisão monocrática pode se substituir no tempo à do colegiado e a outro Poder, como no caso do Legislativo, negando-se validade, por exemplo à lei sob mero “juízo de aparência”. Exatamente o que a mencionada PEC 8/2021 pretende evitar[5].

Cabe aqui dizer que juiz não escolhe (em uma democracia, não se pode ter um Poder Judiciário discricionário), juiz decide fundamentado na Constituição (possui responsabilidade política). O jurisdicionado tem o direito a uma resposta ao seu caso, adequada à Constituição. Isso representa grande parcela do jogo democrático. Muito disso pode ser lido em Ronald Dworking e seu general attack against positivism[6]. Sobre ativismo (que nunca é bom ou mal. Ativismo judicial é sempre ruim pois é antidemocrático), pode-se citar o recente overruling realizado pela Suprema Corte dos EUA com a superação do precedente histórico Roe vs. Wade [7]. Aliás, aqui cabe um parêntese, não seria adequado acolher a teoria do realismo jurídico dos EUA, onde predomina a ideia de que Direito é o que os tribunais dizem que é.[8]

Sem que se estenda muito sobre o tema princípios, mas o sentido de uma decisão colegiada é exatamente ter como perspectiva a garantia (ou pelo menos uma maior probabilidade) de uma melhor deliberação, submetendo os julgadores à possibilidade de posições divergentes, decidindo-se por maioria. Da mesma forma é a ideia de julgamento pelo plenário do tribunal evitando-se, com isso, que eventuais composições fracionais (turmas ou câmaras) não representem em uma macrovisão (unidade coletiva) à posição prevalente pelo tribunal em sua completa composição, representada exatamente na ideia exposta anteriormente da regra da full bench clause.

Entretanto, para finalizar, é necessário dizer que a perspectiva da colegialidade, isto é, da decisão colegiada, não deve jamais ser entendida como a abdicação da fundamentação individual do julgador em nome do consenso ou o que a ministra Rosa Weber já chamou (naquele mesmo julgamento do Habeas Corpus 126.292) de princípio da colegialidade (sic). É dizer, a independência funcional do juiz serve como um dos pressupostos de sua imparcialidade como julgador e não deve ser sobreposta, decidindo contra si mesmo, por absoluta incoerência. O debate, portanto, da necessidade de prestígio à colegialidade, orientação fundamental das decisões judiciais no âmbito dos tribunais, onde o controle da decisão deve ser coletivo.

O STF tem poder, aliás, para que dentro da perspectiva do judicial review e do protagonismo dado — legitimamente — pela própria Constituição, considerar a emenda constitucional decorrente da referida PEC, inconstitucional (via ação direita de inconstitucionalidade), caso entenda que a redação infringiu o artigo 60, § 4º da Constituição. Aguarda-se.


[1] Ressalto que para ser efetiva como emenda à Constituição, o texto da PEC terá, ainda, de passar em dois turnos, nas duas Casas, com quórum qualificado, conforme dispõe o artigo 60 da CF. É inafastável, porém, que existe um tom de revanchismo no Congresso Nacional injustificado contra o Supremo Tribunal Federal. Em sentido contrário ver: CATTONI, Marcelo: https://www.prerro.com.br/a-inconstitucionalidade-da-pec-8-2021-o-ataque-institucional-ao-supremo-tribunal-federal/.

[2]Em 2020, por exemplo, segundo o próprio Supremo Tribunal Federal (ver aqui: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=457782&ori=1), a Corte emitiu um total de 81.161 decisões monocráticas e somente 18.208 colegiadas, distribuídas entre as Turmas e o Plenário, o que demonstra uma clara predileção por decisões individuais em detrimento de decisões colegiadas.

[3] Ressalva: a previsão estabelecida no art. 5º, §1º da Lei 9.882/99 de que o relator possa conceder, monocraticamente e liminarmente, tutela de urgência em ADPF não é interpretação ativista do STF, eis que decorre de uma interpretação sistemática de que as Leis Federais 9868/1999 e 9882/1999 constituem um verdadeiro microssistema processual que é regido por princípios comuns.

[4] Aqui cabe outra ressalva mais: decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal no caso da ADI 4277 e a ADPF 132, que reconheceu o direito ao estabelecimento de união estável por casais homoafetivos e o julgamento na Corte sobre atos ofensivos praticados contra pessoas da comunidade LGBTQIAPN+  equiparando-os como crime de racismo, discutido na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26 e no Mandado de Injunção 4.733 protege-se vulneráveis e não se reduz imediatamente a tutela de nenhum outro bem jurídico.

[5] Em que pese o Supremo Tribunal Federal já ter aprovado mudanças no seu regimento interno que limita a concessão de liminares e o prazo máximo do período de vistas requerido por um ministro (60 dias). Regra mais rígida, inclusive, do que a PEC 8/2021 propõe.

[6] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução e notas, Nelson Boeira. São Paulo, Martins Fontes, 2002, p. 35.

[7] Tema que pode ser visto aqui: https://www.migalhas.com.br/depeso/394744/overruling-do-caso-roe-vs-wade-da-suprema-corte-dos-eua; e aqui: https://www.newsweek.com/alan-dershowitz-confronts-hannity-abortion-rulings-judicial-activism-1719176.

[8] Embora até pareça que vivemos um realismo jurídico de facto, já que muitos manuais e livros jurídicos vendidos por aí (bestsellers, inclusive) são compilados acríticos de reproduções de decisões dos tribunais.

Artigo originariamente publicado em: https://www.conjur.com.br/2023-out-17/renoldi-faria-decisoes-monocraticas-tribunais

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