Globalização, crime organizado e compliance

Diego Renoldi Quaresma de Oliveira

A globalização[1], grosso modo, é um fenômeno de expansão econômica de caráter transnacional, proporcionado pela revolução tecnológica (Eletronic Revolution) com o uso da informática que elimina as fronteiras dos mercados tradicionais, transformando-os em mercados globais (World Markets), e permite transações financeiras e comerciais internacionais quase impossíveis de se rastrear adequadamente pelas autoridades competentes, independentemente se são atividades financeiras lícitas ou ilícitas.

Do ponto de vista estritamente criminal, antes era o risco de se transportar pelas fronteiras dinheiro em espécie para lavagem de capitais. Posteriormente, passou-se à preocupação do Banco Central Europeu com a criação da nota de 500 euros, um facilitador de atividades ilícitas como a própria lavagem de dinheiro [2]. Todavia, na atual quadra deste século, as preocupações se somam. Jeffrey Robinson pontualmente contextualiza a situação:

“[A] primeira coisa com a qual os traficantes costumavam se preocupar era como livrar-se de seus francos. Digamos que eles pré-lavavam, transformando-os em marcos alemães e depois em dólares. Feito issso poderiam começar a colocar o dinheiro no sistema bancário. Agora, como uma pequena marca na tela do computador, o dinheiro girava em volta do mundo sem que ninguém conseguisse associá-lo ao dinheiro de drogas vendidas na França.”[3]

Nota-se, portanto, que se está em um ponto do avanço tecnológico em que é possível mediante transações bancárias inteiramente eletrônicas enviar valores para qualquer lugar do planeta sem a necessidade de se correr o risco de sair por aí carregando pastas executivas (attaché cases) em milhares de dólares em dinheiro em espécie como era necessário fazer antigamente.

Agora, as operações financeiras estão ao alcance de uma mão. Nesse propósito, Jeffrey ainda ressalta que, se um grupo do crime organizado transnacional recebesse uma varinha de condão que permitisse satisfazer apenas um desejo, esse seria uma Europa sem fronteiras e com uma única moeda que incluísse notas de 500 euros [4].

Essa mudança estrutural de interação econômica e versatilidade do fluxo de capitais circulantes trazida pelo mercado global afeta também a soberania dos países, pois essa facilitação internacional favorece o crime organizado transnacional que aproveita o intercambio para formar joint vetures.

É dizer, há uma evidente percepção de que um único Estado, isoladamente, não consegue fazer frente à criminalidade organizada transnacional, produtora do narcotráfico, da lavagem de dinheiro e do tráfico de pessoas e armas gerando novos riscos e sentimentos de insegurança, panorama bastante perceptível, por exemplo, na tendência mundial de ampliação do direito penal simbólico e de um direito penal do inimigo [5], situações imbuídas na própria expansão do direito penal econômico.

A necessidade de um bom funcionamento do mercado globalizado diante do dinamismo da circulação de bens e serviço e da própria criminalidade global desencadeou o surgimento de novas regras que não podem mais ser produtos único dos estados [6] e demandam uma aceitação de uma regulação transnacional [7].

Em palavras outras, há uma inclinação para a admissão de construção de pontes normativas internacionais de regulação das atividades empresariais atuantes nas economias de livre mercado e de combate ao crime organizado transnacional relativizante da tradicional obstaculização da soberania de cada país, a exemplo do Foreign Corrupt Practices Act (FCPA) e do U.S. Securities and Exchange Commission, dos EUA, apenas para citar dois.

Diante desse quadro, tornou-se tendência mundial a flexibilização daquele conceito tradicional por meio de acordos de cooperações multilaterais e órgãos internacionais de combate ao crime organizado, como as normas de prevenção à lavagem de dinheiro (leis antilavagem ou Convenções como a de Viena de 1988, a Convenção de Estrasburgo de 1990 ou a Convenção de Palermo de 2000 etc.) ou agências governamentais de inteligência financeira, como o Grupo de Ação Financeira Internacional (Gafi).

Como consequência, a subscrição desses tipos de tratados, convenções e diretrizes da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) gera o compromisso para o Estado de elaborar ou adequar suas normas internas à viabilização da consecução de objetivos internacionais. No Brasil, um dos exemplos mais marcantes é o da Lei de Prevenção à Lavagem de Dinheiro, Lei Federal 9.613/1998, a qual foi alterada pela Lei Federal 12.683/2012, atendendo a influência e pressão das disposições normativas internacionais.

Essa mesma influência internacional é também perceptível na Lei Federal 12.846/2013 (Lei Anticorrupção Empresarial), que dispôs em seu artigo 7º, VIII que serão levados em consideração na aplicação das sanções “a existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica”.

Prevenção de condutas desviantes

A lei brasileira, portanto, apesar de não obrigar as pessoas jurídicas a implementarem programas de compliance, ela estimula a atuação dentro da legalidade e prevenção de condutas desviantes, tendo em vista as pesadas sanções, a responsabilidade objetiva da pessoa jurídica pela prática de atos cometidos por seus representantes, em seu interesse ou benefício [8].

É dizer, um programa adequado e efetivo de compliance não somente preza pelo cumprimento da lei evitando violações ou irregularidades, mas também atua no propósito de produzir elementos de investigação capazes de demonstrar a atuação da empresa dentro da conformidade, mitigando futuras e prováveis sanções, permitindo a celebração de acordos processuais ao reportarem o fato às autoridades (ex. acordo de leniência). Uma espécie de atenuante da compliance segundo o inciso VIII do artigo 7º da referida lei. [9]

Percebe-se, então, que esse tipo de cuidado e responsabilidade também recai, de certa maneira, às empresas, no que diz respeito a necessidade de melhora da governança corporativa e do legal compliance (corporate approach). Inclusive, como fator redutor de sanções (criminais ou não) às pessoas jurídicas (criminal compliance), dado a ideia de ampliação da capacidade de gerenciamento das situações de risco de desvio de irregularidades civis ou administrativas ou ilícitos penais.

Assim, tendo em vista o aparente engajamento internacional na cooperação e na uniformização de aspectos normativos, como o próprio conceito de lavagem de dinheiro e os delitos antecedentes [10] é que surge a importância de implantação de programas transparentes de compliance e de padrões de conformidades às pessoas jurídicas.

Da preocupação com os delitos econômicos surge a necessidade cada vez mais corriqueira da obrigatoriedade de se reportar fatos às autoridades de outros países, atraindo, desse modo, mais de um ordenamento jurídico pautados na cooperação transnacional para coibir o crime organizado e o terrorismo.

Contextualizando, desde o fim da União Soviética o debate é menos sobre ideologia e nações e mais sobre um mundo colegiado de corporações transnacionais, onde se é determinante a “lei dos negócios” do modelo econômico de livre mercado. Aliás, “o mundo é um negócio. Tem sido desde que o homem saiu da caverna” já alertava o personagem Arthur Jensen, interpretado pelo ator Ned Beatty no filme Rede de Intrigas de 1976 (Network, no original em inglês).

No conjunto obrigacional da empresa, atuante neste fenômeno econômico mundial da globalização, a necessidade do comprometimento de possuir programas de compliance criminal em esforço ativo, seja ele preventivo ou defensivo de produção de elementos investigativos ou probatórios futuros que possam apontar “créditos à empresa” — leia-se: diminuição das sanções —, caso seja necessário reportar fatos para alguma autoridade nacional ou estrangeira.

Com a globalização e a intensificação das trocas comerciais transnacionais das grandes corporações, os movimentos de internacionalização de prevenção e combate à corrupção e a criminalidade em geral também foram intensificados, por absoluta necessidade, eis que a criminalidade organizada transnacional prospera para além do alcance do tradicional conceito de soberania presente nos tradicionais livros de Teoria Geral do Estado.

A lição que se obtém de todo esse cenário é a necessidade de um verdadeiro combate aos delitos econômicos complexos, principalmente nos países periféricos que estão mais acostumados a criminalizar, perseguir e punir delitos decorrentes da exclusão social e da pobreza do que os delitos que estão na raiz do desenvolvimento de qualquer país.

[1] Tema que não cabe neste artigo maiores dissertações, mas que é brilhantemente tratado por Milton Santos em diversas de suas obras e escritos.

[2] Sobre o tema lavagem de dinheiro ver: OLIVEIRA, Diego Renoldi Quaresma de. Os três estágios da lavagem de capitais. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-dez-31/os-tres-estagios-da-lavagem-de-capitais/. Ver ainda: Lavagem de dinheiro: temas polêmicos no brasil, argentina, equador e EUA org. Filipe Maia Broeto e Diego Renoldi Quaresma de Oliveira. Curitiba, CRV, 2021.

[3] ROBINSON, Jeffrey. A globalização do crime. Tradução Ricardo Inojosa. Rio de Janeiro. Ediouro, 2001, p. 382.

[4] Idem, p. 383.

[5] Sobre esse paradigma ver: CALLEGARI, André Luís. Controle social e criminalidade organizada. In: Crime organizado: tipicidade – política criminal – investigação e processo. Brasil, Espanha e Colômbia. André Luís Callegari, Manoel Cancio Meliá, Paula Andrea Ramírez Barbosa. Porto Alegre. Livraria do Advogado Editora. 2008, p. 16. No mesmo sentido: BARRILARI, Claudia Cristina. Crime empresarial, autorregulação e compliance. 2 ed. atualizada e ampliada. São Paulo. Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 23.

[6] BARRILARI, ob. cit., p. 58.

[7] Idem, p. 62

[8] Apesar de no artigo 5º a Lei tratar da responsabilidade objetiva da pessoa jurídico, ressalva que a responsabilidade individual dos dirigentes e administradores ocorrerá na medida da culpabilidade de cada um (§2º, artigo 2º).

[9] Sobre o tema ver: BARRILARI, Claudia Cristina. Crime empresarial, autorregulação e compliance, ob. cit., p. 240 e ss.

[10] Me refiro a aparente, pois entendo que há uma tolerância indevida, principalmente dos países da Commonwealth britânica do Caribe, em solucionar a problemática causada pelos paraísos fiscais (tax haven) e as offshores responsáveis em grande medida pela lavagem de dinheiro no mundo. Sobre o tema, consultar a obra: SHAZSON, Nicholas. Treasure Islands. Tax havens and the men who stole the world. London. Vintage, 2011.

Veja o artigo originalmente publicado em: https://www.conjur.com.br/2024-jun-18/globalizacao-crime-organizado-e-compliance/

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