O erro de se vincular Al Capone à lavagem de dinheiro

Diego Renoldi Quaresma de Oliveira:

Há uma vinculação da figura de Al Capone [1] (e de toda a máfia de Nova York e de Chicago do primeiro quartel do século passado) com o delito de lavagem de dinheiro (ou de capitais, se assim preferir) [2], no qual, supostamente, o dinheiro obtido com a prática de crimes era investido em negócios de legítimos como a prestação de serviços de lavanderia por meio de lavadoras de roupas automáticas (coin-operated laundromats). Entretanto, essa vinculação com a lavagem de dinheiro não passa de mito, sendo uma construção romântica desses dois temas, por assim dizer, mas que não pode ser confundida por aqueles que atuam com a linha do Direito Penal Econômico [3]. Explico.

Muitos autores definem que tanto o conceito quanto a expressão “lavagem de dinheiro” se tornaram usual quando organizações criminosas como a de Al Capone enriqueceram na época da Lei Seca nos EUA [4], onde se proibiu, por meio do “The National Prohibition Act” (também conhecido como Volstead Act), qualquer tipo de fabricação e comercialização de bebidas cujo teor alcoólico fosse superior a 0,5% (com vigência de 1920 a 1933 [5]). Uma das maiores consequências da edição dessa lei foi o incremento da estrutura e do poder das organizações criminosas na época [6].

Sobre a prática econômico-financeira da lavagem de dinheiro, ela pode ser resumidamente definida como o conjunto de operações realizado com a finalidade de fazer com que o dinheiro obtido ilegalmente mediante a prática de crimes (dinheiro sujo) passe por uma série de transações para que ao final, desvinculado do “possuidor originário” e da sua origem, pareça ter sido obtido de maneira legal (dinheiro limpo).

Existem três estágios em qualquer lavagem de dinheiro (também chamada de branqueamento de capitais) que podem ser classificados como: colocação (placement); ocultação ou mascaramento (layering); e integração (integration)[7].

Desse modo, em termos práticos, primeiramente o capital ilícito é introduzido sorrateiramente (as possibilidades são enormes e usualmente o primeiro estágio da lavagem de dinheiro é realizado mediante o uso de empresas de fachada, offshores, por meio dos chamados fake invoices, segredo bancário etc.) no sistema financeiro. Uma vez introduzido como ativo no sistema financeiro, o capital é colocado em uma série de transações (movimentações dentro e fora do país) para que haja o mascaramento (ou ocultação) e a desvinculação da sua origem criminosa para que o capital ganhe aparência de “dinheiro limpo”. Por fim, integrado no sistema financeiro global por meio dessas transações financeiras, o capital pode ser normalmente utilizado pelo agente como se fosse um produto lícito para aquisição de bens e ativos como imóveis, veículos, iates, aviões, valores mobiliários, empresas e uma infinidade de outras aquisições.

Muito embora pese o fato de Al Capone ter controlado sindicatos de trabalhadores e outras associações de classe com o propósito de assegurar as operações conquistadas por sua organização criminosa e ganhado muito dinheiro ilícito com suas atividades criminosas [8], tais condutas não poderiam (e não podem) ser enquadradas como atividades típicas (e operativas) de lavagem de dinheiro (e seus estágios) [9].

Primeiro, porque não havia razão para isso. Não existia nem o conceito de lavagem de dinheiro nem sua criminalização. Não havia qualquer norma de prevenção à lavagem de dinheiro (leis antilavagem ou Convenções como a de Viena de 1988, a Convenção de Estrasburgo de 1990 ou a Convenção de Palermo de 2000), teoria da cegueira deliberada (wilful blindness), ou agências governamentais de inteligência financeira como o Grupo de Ação Financeira Internacional (Gafi) [10]. Na prática, ninguém (nem o governo) se importava com quanto dinheiro você colocou em sua conta, desde claro, você pagasse os impostos decorrentes. Conforme explica Jeffrey Robinson [11], até meados dos anos 1960, a prática usual da máfia como um todo era enviar o dinheiro não rastreado pelo o Internal Revenue Service (IRS) [12], para o exterior por uma questão bem simples: o capital que o IRS não conhecia, não era tributado [13]. Com efeito, sob essa premissa, buscou-se, então, maneiras de esconder o dinheiro ilícito do fisco (sonegação fiscal) e uma das formas encontradas foi a mais óbvia, a de enviar o dinheiro ilícito para paraísos fiscais (tax haven) — que estavam iniciando suas operações de offshorespor meio de contas bancárias numeradas na Suíça, Cuba (antes da Revolução Cubana de 1959) e posteriormente nas Bahamas e Ilhas Cayman etc. Países que até os dias de hoje são pertencentes à “indústria de sigilo financeiro” (financial secrecy) [14].

Segundo. Al Capone jamais usou (ou ouviu) a expressão lavagem de dinheiro (money laundering). A expressão somente apareceu pela primeira vez nos jornais dos EUA em abril do ano de 1973, época em que ocorreu o famoso escândalo de Watergate e não teve qualquer ligação com Al Capone e as máfias de Nova York e de Chicago[15]

Terceiro. Foi apenas no ano de 1986 que o primeiro país, no caso os EUA, por meio do Money Laundering Control Act, que criminalizou a prática da lavagem de dinheiro. Aconteceu 39 anos após a morte de Al Capone em 1947.

É dizer, não resta dúvida, de que nunca foi colocado em prática por Al Capone (ou pelas máfias americanas até os anos de 1970) os ciclos da lavagem de dinheiro (colocação ocultação e integração), e, aliás, o esquema de Capone nem era sofisticado o bastante porque simplesmente não precisava ser.  A fundamental preocupação de Al Capone e da máfia naquela época era a mera evasão fiscal, não existindo qualquer evidência de procedimentos de lavagem de capitais, mesmo que básicos, pois seria um esforço absolutamente desnecessário ante a ausência criminalização da conduta na época.

Portanto, despreocupado em inserir o dinheiro obtido ilicitamente em ciclos de transações para ter aparência de licitude ao final, Al Capone simplesmente investia o dinheiro obtido ilicitamente diretamente na compra de negócios legítimos (lojas, fábricas, prestação de serviços etc.) [16], atividades estas nem um pouco relacionadas com à lavagem de dinheiro.


[1] Alphonse Gabriel Capone, ou simplesmente Al Capone foi um dos chefes da máfia na Cidade Estadunidense de Chicago, Il nos anos 20 e 30 do século passado e supostamente os milhões de dólares obtidos por Al Capone provenientes de negócios ilícitos como prostituição, jogos, extorsão, violações das leis de proibição do álcool foram investidos em negócios legítimos com a aquisição de diversas lavanderias que detinham máquinas lavadoras de roupas e tecidos alimentadas por moedas (coin – operated) por toda a cidade de Chicago. A esse respeito vários autores afirmam que foi a partir dessas lavandeiras que a mídia e as autoridades da época cunharam a expressão adotada até hoje: Money Laundering. Ver: ABADINSKY, Howard Organized Crime, ob. cit., p. 60; MARENGO Federico. Aspectos Generales del Lavado de Activos. Revista Pensamiento Penal. nov. de 2014. Disponível em: http://www.pensamientopenal.com.ar/system/files/2014/12/doctrina28927.pdf.

[2] Há autores que também propõe a denominação “lavagem de ativos”. Nesse sentido. CALLEGARI, André Luis et all. “Breve considerações notações sobre a lei de lavagem de dinheiro”. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 92. São Paulo. Revista dos Tribunais. Setembro 2011, p. 247. Mesmo concordando com o professor quanto ao “termo mais adequado” neste artigo utilizarei a expressão lavagem de dinheiro pelo fato de se tratar do uso mais comum pela doutrina nacional e estrangeira.

[3] Um dos autores que se equivoca quanto a estes fatos ao dizer que a expressão lavagem de dinheiro decorre da máfia dos anos 30 e de Al Capone é MORO, Sérgio Fernando. Crime de lavagem de dinheiro. Saraiva. 2010.

[4] Também chamada em inglês de Prohibition ou “the Great Experiment”.

[5] ABADINSKY, Howard Organized Crime, 9 ed. Wadsworth, Cengage Learning, Belmont, 2010, p. 58. A Lei Seca foi revogada em 05 de dezembro de 1933.

[6] ABADINSKY, Howard Organized Crime, ob.cit., p. 61.

[7] Para aprofundamento sobre o tema lavagem de dinheiro e seus três estágios ver: Oliveira, Diego Renoldi Quaresma de. Os três estágios da lavagem de capitais. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-dez-31/os-tres-estagios-da-lavagem-de-capitais/.

[8] Cfr. ABADINSKY, Howard Organized Crime, ob. cit., p. 117.

[9] Na época em que controlava a máfia de Chicago, Al Capone foi sentenciado a pena de 11 anos pela prática do crime de tax evasion (sonegação fiscal) e parcialmente cumprida na famosa penitenciária de Alcatraz. A esse propósito, não se pôde provar as outras acusações que pesavam contra ele como extorsão, homicídio etc. Ver: MADINGER, John, Money Laundering, ob. cit., MADINGER, John, Money Laundering, a guide for criminal investigators, Boca Raton, CRC Press, 2011. Ebook.

[10] No Brasil, a Unidade de Inteligência Financeira é o Coaf – Conselho de Controle de Atividades Financeiras

[11] ROBINSON, Jeffrey. The Laundrymen. ROBINSON, Jeffrey. The Laundrymen: Inside the World’s Third Largest Business 2. Ed. Pocket Books, London, 1998, p. 4

[12] Órgão pertencente ao Departamento do Tesouro dos Estados Unidos da América do Norte (Department of Treasury).

[13] ROBINSON, Jeffrey. The Laundrymen, ob. cit., p. 4

[14] ROBINSON, Jeffrey. The Laundrymen, ob. cit., p. 4

[15] Sobre o tema ver: Lavagem de dinheiro: temas polêmicos no brasil, argentina, equador e EUA org. Filipe Maia Broeto e Diego Renoldi Quaresma de Oliveira. Curitiba, CRV, 2021; ROBINSON, Jeffrey. The Laundrymen, ob. cit., p. 5.

[16] Sobre o tema ver: Lavagem de dinheiro: temas polêmicos no brasil, argentina, equador e EUA org. Filipe Maia Broeto e Diego Renoldi Quaresma de Oliveira. Curitiba, CRV, 2021; ROBINSON, Jeffrey. The Laundrymen, ob. cit., p. 5.

Artigo originalmente publicada Revista Consultor Jurídico: https://www.conjur.com.br/2024-jan-23/o-erro-de-se-vincular-al-capone-a-lavagem-de-dinheiro/

https://6ca3f60471420233f23544692a9d24fe.safeframe.googlesyndication.com/safeframe/1-0-40/html/container.html

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *