Existem basicamente duas formas de se “promover a “cultura do cancelamento”, isto é, nova forma antidemocrática de perseguir, constranger e condenar ao ostracismo pessoas que exercem o direito fundamental de manifestação do pensamento (artigos 5º, IV, V, X, XIII, XIV e 220 da Constituição da República). Direito fundamental, aliás, garantido, também, no artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, ao definir a liberdade de expressão como direito como a liberdade de emitir opiniões, ter acesso e transmitir informações e ideias, por qualquer meio de comunicação.
A primeira das formas se dá por meio de engajamento de massas (redes sociais, principalmente, com a participação de pessoas de todas as idades), a pessoa é totalmente ‘cancelada”. Ela é proibida de se expressar, seu empregador é pressionado a demiti-la ou de algum modo ela é impedida de ser contratada, de exibir sua arte, de discursar para quem quer ouvi-la etc. A pessoa é cancelada, ponto final. Fenômeno similar às penas de banimento, recorrente na Antiga Grécia.
A outra forma, por sua vez, é a de “cancelar” algo que vem daquela pessoa, como atitudes, vídeos, artigos ou livros. Isso tem acontecido, por exemplo, com obras que contém, de certo modo e até certo ponto, elementos de racismo e retratações estereotipadas como alguns livros de Monteiro Lobato (Sítio do Pica-Pau-Amarelo; A menina do Narizinho Arrebitado, dentre outros), Hergé (Tintim no Congo; Tintim no País dos Sovietes), Dostoiévski (Irmãos Karamazov; Crime e Castigo), Dr. Seuss (O gato de cartola) dentre outros célebres autores que não estão mais vivos e com isso não podem mais se defenderem, sinalizar uma mudança de opinião ou ainda reconhecer que se equivocaram em seus escritos.
A cultura do cancelamento além de seletiva e de ocasião – pois concentra energias em cancelar quem melhor convém ou apenas o que se sabe “daquele a ser cancelado” – é anti-histórica, anti-intelectual e antijurídica. Ela fere a liberdade de expressão e não permite verdadeiramente que se ensine ou se dialogue sobre racismo, preconceito, estereótipos ou direitos e garantias individuais como o estado de inocência (a mídia sensacionalista e “influencers de toda estirpe” pouco se importam com direito ao devido processo legal).
A cultura do cancelamento faz pior, ao anular o debate “do outro cancelado”, ela não impede a sociedade de repetir os erros do passado como o holocausto, o genocídio, a escravidão etc., na verdade, ela cria sua própria bolha ideológica, seu próprio método de pasteurização social e constrói um tribunal informal de exceção para chamar de seu (opinião pública).
A resposta considerada correta a uma opinião discordante não se dá pela censura (prévia ou posterior), ela se dá pela resposta adequada ao se permitir expor as contradições ou equívocos daquela forma de pensar, argumentar ou se expressar. É dizer, livros ruins se combatem com bons livros, discursos irracionais são combatidos, não pelo cancelamento pura e simplesmente, mas com debates racionais.
A censura de determinado discurso, de um programa de TV ou de uma pessoa determinada, fere os direitos básicos daqueles que querem exercer a liberdade de autonomia de beber daquela fonte ao ouvir e assistir aquele discurso ou ainda ler aquela opinião. Democracia se constrói assim, com debate de ideias.
Nesse ponto, não cabe ao Estado ou aos particulares a determinação do que pode ser lido, visto ou ouvido pelo cidadão, pois democracia é, também, autonomia de escolha como exercício de liberdades individuais. Trocando em miúdos, o cidadão em um país democrático exerce essa liberdade de escolha com a tomada de decisões, ao decidir, dentre outras coisas, que tipo de livro ou periódico que será levado para casa, qual literatura será lida e ensinada para os filhos, a ida ou não à igreja aos domingos ou quais canais e programas de televisão serão fonte de informação daquela família.
A cultura do cancelamento é um ataque à liberdade de expressão e deve ser cancelada. Já!